domingo, 26 de janeiro de 2014

O Senhor Toni.

Todo o lisboeta que estaciona, tem um arrumador no coração.

O arrumador de carros é o polícia sinaleiro dos tempos modernos. Ele desmonta-se em sinalética gestual para nos dizer que é ali que está o lugar onde o nosso carrinho vai ficar. Ele assobia para nos moralizar. Ele organiza em segundos um engarrafamento de carros que não querem andar dali para lado nenhum. Querem parar. Aquece-nos o coração com aquela vaga de 8 m2 de terreno, que, durante umas horas, vai ser nossa.

O meu arrumador querido é o Sr.Toni. O Sr.Toni fez anos esta semana. 71 anos. E disse-me. E eu, nesse dia, de alma apertada por não entender porque é que neste mundo alguém com esta idade tem que arrumar carros, dei-lhe uma moeda de dois euros.

O Sr.Toni tem a pele morena e curtida pelas vontades da meteorologia. Falta-lhe a falangeta do dedo indicador da mão direita. A mão onde eu deposito as moedas. Como todos os seus colegas, lê-se-lhe nos dentes a história áspera da sua vida. Aposto que quando era miúdo nunca sonhou com aquela profissão. Porém, a julgar pelo sorriso encantador com que me recebe todas as manhãs, ninguém o diria.

Quando chego à Penha de França, em contagem decrescente e de alta velocidade para as 9 da manhã, lá está ele com o lugar guardado para mim. Assobia-me os bons-dias e eu sigo as setas que saem do seu braço até ao solo sagrado. Quando saio do carro falamos do tempo. Está cá uma brasa. Está cá um briol. Esta chuva que não molha. Esta chuva que não passa.

Mão estendida. Moeda. Desejamo-nos mutuamente bom trabalho. Até amanhã.

Muita gente diz que os arrumadores são uma praga. Que usurpam aquilo que é nosso por direito para nos levarem as moedas. Que se vingam se dermos pouco dinheiro. Que riscam o carro.
A mim nunca aconteceu. Como em todas as profissões há gente reles. Mas eu, sou bafejada pela sorte.

Digam lá que naquelas horas em que já estamos tontos de tantas voltas dar com o veículo e não encontrar um buraco para o meter, não sabe bem ouvir um assobio, olhar e ver uma mão no ar a indicar o caminho certo? Ai sabe sabe.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Com ou sem elas?

Lisboa é cidade boémia e de doce embriaguez que por tudo e por nada ergue os copos num brinde e aclama: à nossa.
Os copos cheios manifestam alegrias, abafam tristezas, brilham de felicidade ou tremem de frustração. Ou então, não. O álcool não tem que ter um pretexto. Bebe-se.

Em Lisboa consome-se grande variedade de pinga. Do mais delicado licor ao vinho a martelo. Porém a rainha de Lisboa, nesta liquida matéria, é a menina Ginjinha.

A Ginjinha é a bebida oficial da cidade. Coradinha e açucarada. Quem nunca brindou com ela, não sentiu o sabor da capital. E nem que venha a malta de Óbidos e da Batalha toda junta reclamar a propriedade, eu não me rendo. A Ginjinha é património liquido de Lisboa.


Com elas. Sem elas. É ver os devotos e os turistas à porta da Ginjinha do Rossio ou do Pirata. É por-se na fila e apreciar a experiência. É sentir as solas dos sapatos a colar ao chão pela viscosidade que o precioso liquido espalha quando verte dos copos. É ouvir o senhor por trás do balcão perguntar: “Com ou sem?” e escolher uma de cada. É equilibrar os copinhos na mão e tentar sair para a rua sem perder uma gota. É beber. Beber com carinho e respeito. Brindar. Cavaquear com os amigos à volta dos copos.

Repete-se o ritual as vezes necessárias para se ficar feliz.

A cerimónia da Ginjinha pode decorrer em vários locais. Os mais famosos templos de culto são a Ginjinha do Rossio ao pé do Teatro Nacional, o Pirata nos Restauradores, a Ginjinha sem Rival, a Ginjinha do Carmo, a Espinheira, a Rubi, a Popular, assim que me lembre de repente. Há também a Tendinha do Rossio, imortalizada pela Hermínia Silva no fado homónimo. Vão a todas. No mesmo dia de preferência. Só assim verão como é difícil escolher a melhor.

Para mim é um mistério como é que um licor feito com ginja, açúcar amarelo e aguardente é tão bom. A verdade é que é. Aquela doçura misturada com a acidez da ginja é singular e deliciosa. Aliás, nada melhor do que ser rigorosa e exacta na explicação. Nada como a precisão. Sabem como sabe a Ginjinha? Sabe que nem ginjas.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Vou ao Estádio.



Lisboa é uma cidade de cafés e tascas. São espaços públicos que se mantêm. Ao longo dos anos ouviram segredos conspirativos, planos mirabolantes e viram histórias de amor começar e terminar, sem contarem a ninguém.
Cada lisboeta tem os seus sitios. O seu café, a sua tasca, a sua segunda casa. Cada balcão é um abraço. Cada mesa é um sofá caseiro e confortável. Cada empregado é um familiar.
Há uma tasca que já foi minha e onde voltei esta semana. Ia com o coração aos pulos. Mas a verdade é que ainda se lembrava de mim. Quando entrei as paredes piscaram-me o olho.
Fui ao Estádio.
Coladinho ao Bairro Alto, ali na Rua de São Pedro de Alcântara, o Estádio é uma das tascas mais castiças de Lisboa. Reza a lenda que tem mais de cem anos e que por ali andaram os jornalistas na altura em que o Bairro era a sede de todos os jornais. Que o Jorge Palma escreveu por lá algumas letras encantadas e que ali se conspiraram destinos da nação.
Quando entramos sentimos o ambiente viciado pelo fumo dos cigarros. As paredes estão amareladas e não são pintadas desde o dia de abertura. A luz branca que fere os olhos, ali é quase um carinho. As mesas de fórmica azul-bebé devem ter sido substituidas na década de 70 e estão ali para durar.
Lá se mantêm os três elementos do decor que são tão clássicos e que nunca poderão desaparecer, sob pena de gerarem abaixo-assinados e petições. O quadro, a jukebox e a máquina de flippers.
O quadro é uma pintura naif hiper-realista com proporções e escalas muito mal medidas  do Estádio Nacional. Foi absorvendo fumo, sendo limpo com panos húmidos e entranhando alguma gordura. Um verdadeiro tesouro para um arqueólogo que com um pincel fosse detectando, camada após camada, quais marcas de cigarro se foram fumando ou a história dos detergentes ao longo do século XX.
A jukebox é o meu objecto preferido. Não tem o "Voyage Voyage" da Desireless que é o meu nº1 do top-jukebox. Mas tem Gainsbourg, Amália, Birkin, Heróis do Mar, Bee Gees e outros tantos que agora não me recordo. Está sempre a tocar. Há sempre um saudosista com uma moeda. Há dias em que tem fila de espera. Há músicas que só sabem bem se forem escutadas directamente daquela jukebox. O youtube tira-lhes o sabor.
A máquina de flippers não é coisa que eu use. Mas agrada-me ver aquelas batalhas homem/máquina em que o homem diz palavrões e a máquina devolve luzinhas a piscar e sonzinhos irritantes.
No Estádio bebe-se cerveja e comem-se amendoins. Quando muito pedem-se umas batatas Titi.
No Estádio bebem-se muitas cervejas. Muitas. Só assim é possível que por ali se decida que no dia seguinte se mudará de vida. Que se vai deixar de obedecer à ordem vigente e vai ser-se poeta ou marinheiro. Ou aviador. Quem entra ali pode ser de qualquer crença política. Sai-se é sempre de esquerda e a trautear a Internacional.
Como o nome indica, o Estádio é o sitio ideal para ver jogos de futebol. O local vira bancada. Com direito a cachecóis, bandeiras e insultos à mãe do árbitro.
Tempos houve em que o Sr. Manuel nos trazia cervejas à mesa. Com ele a comunicação era por linguagem gestual. Duas mãos em concha na zona do peito eram duas médias Sagres fresquinhas. O dedo médio esticado no ar, era mais uma. O Sr. Manuel morreu vai para dez anos e perdeu-se essa tradição. Mas ficará para sempre na memória de quem por ali bebeu e voltou a beber.
E se querem saber mais, vão lá. Só lá vão saber do que falo. Levem amigos, metam moedas na jukebox e mandem vir cervejas para a mesa.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Lisboa é um pombal.



Os pombos. Ai os pombos a sobrevoar Lisboa.

Esses bandos que cruzam os céus a disseminar toxoplasmose, piolhos e ácaros, ora na minha varanda, ora na estátua do D. José, ora aqui, ora ali, como se semeassem flores.
Esses bravos que arriscam diariamente a saúde pública completando com afinco e entrega a tarefa das ratazanas, em locais altivos onde estas não conseguem chegar.

Os pombos. Ai os pombos a libertarem-se sobre Lisboa.

Ai aquelas manhãs em que saio de casa a cheirar a perfume francês e a champô de frutos exóticos, com um vestido novo e um pombo se aproxima com ternura e me caga minuciosamente o cabelo e a manga, obrigando-me a voltar atrás e a tomar outro banho e a mudar a vestimenta e me atrasa para o trabalho e me faz levar com o olhar de dúvida do meu chefe quando lhe descrevo o sucedido.
Ai o meu carro columbofilamente medalhado como que a dar-me ânimo, a incentivar, como que a sussurrar: continua a estacionar aqui que em breve tens que pagar uma pintura nova para o popó.
Ai as estátuas e as fachadas trabalhadas pela história e pela arte a serem corroídas pelos dejectos líricos soltos com alma sobre a cidade.
Ai a minha vizinha da frente a chamar-me para me avisar: Vizinha, tire aquela fronha do estendal antes que os pombos a sujem mais.

Os pombos. Ai o caraças dos pombos de Lisboa.

Ai o caraças dos pombos a multiplicarem-se.
Ai o caraças da velhinha solitária sentada no banco da Avenida da Liberdade a dar-lhes pedaços de pão.
Ai o caraças do puto a correr atrás deles no Rossio com uma gargalhada e a comover-me como numa cena de filme.
Ai o caraças da pomba a fugir do pombo que agita a cabeça para trás e para a frente, sintoma de paixão, que me faz rir.
Ai o caraças do pombo parado no meio da rua e ai o caraças de mim que não acelero para não me sentir uma assassina.

Os pombos. Ai os pombos de Lisboa.