domingo, 25 de maio de 2014

Olé.







Chegaram os espanhóis. Olé.

D. João IV está a dar voltas no túmulo desde sexta-feira e o obelisco dos Restauradores encolheu um bocadinho.

Vieram buscar a taça e conseguiram. De avião, de comboio, de autocarro e de carro encheram a cidade. Diz-se que são para cima de duzentos mil.

Ocuparam o aeroporto com artilharia pesada. Aviões nunca antes vistos em Lisboa aterraram na Portela, em Figo Maduro, em Cascais e falou-se em encerrar a A5 caso o espaço não chegasse.

Não restou um quartinho dos fundos nas águas furtadas da rua mais esquecida para dormir mais um espanhol. Sobre lotados, os prédios lisboetas incharam com tanto euro que os nuestros hermanos pagaram para alquilar la noche. Olé.

O Metro passou a avisar Por su seguridad no superan la franja amarilla. As lojas da Baixa guardaram os cachecóis da Selecção Nacional e exibiram nas montras os símbolos das equipas madrilenas. Todos os cafés têm o cartaz da Champions à porta em sinal de boas vindas e de que querem fiesta.

E fiesta houve. Cânticos de estádio na Rua Augusta. Espanhóis aos pulos. A Praça do Comércio transformada em campo da bola. Espanhóis aos gritos. Filas no Rossio para comprar as camisolas oficiais. Indianos a venderem as não oficiais. Cerveja. Espanhóis. Espanhóis.

A cidade entrou na onda e saiu à rua para festejar com eles. Coisa nunca vista. Os lisboetas felizes com a invasão. Com a desculpa de que estavam a apoiar o Cristiano Ronaldo na manga, foi ver os locais a dançar e em amena convivência com os adeptos. Olé.

E foi ver na televisão os jornalistas a afirmarem com a mais firme certeza que isto nunca poderia acontecer com equipas portuguesas. Que os adeptos nacionais nunca poderiam confraternizar uns com os outros num país estranho sem se travarem de razões. Que estes espanhóis eram um exemplo a que devíamos atentar. Olé.

No sábado às oito da noite estavam todos arrumadinhos no Estádio da Luz. Ou, aqueles muitos que
vieram sem bilhete, arrumadinhos no Rossio ou no Parque Eduardo VII. Durante 120 minutos Lisboa parou.

Ganhou o Real Madrid. Mas ouvi dizer que os Atléticos não deixaram de festejar.

Hoje de manhã abri o Facebook e o que me salta ao olhar logo são críticas. A esses castelhanos que deixaram o Rossio todo sujo. Uns cerdos. Que vão sujar para a sua terra. Nunca os adeptos portugueses deixariam as Puertas del Sol assim. Nunquinha.
Há-de ser sempre assim. Quando passamos muito tempo com espanhóis, deixamos a Padeira de Aljubarrota que há dentro de cada um vir ao de cima e desatamos à paulada. Olé.

Durante um fim-de-semana o sonho luso realizou-se. Lisboa foi capital desta Ibéria danada. Uma península que nos limita e nos aproxima. Depois de séculos a afirmar que do lado de lá da fronteira não vem bom vento, a coisa ia dando em casamento.

Mas descansem os patriotas mais arreigados. Lisboa é nossa. Os espanhóis já estão de saída. Levam a taça, deixam os euros, salero e talvez saudade. Olé.

domingo, 18 de maio de 2014

A Praça.








Qual é a pata direita do cavalo de D. José?


Majestade de todas as praças de Lisboa, a Praça do Comércio é a menina dos olhos da cidade. O meu coração acelera sempre um bocadinho quando avanço por ela. Há uma vertigem avassaladora e de respeito perante o assombro de amarelo e lioz que se eleva sobre o Tejo em direcção ao céu.

Praça das praças, já foi terreiro em frente ao Paço do Rei D. Manuel que resolveu agarrar na Corte e descer lá do alto do Castelo para viver à beira do rio e ver passar os navios que vinham do outro lado do mundo a cheirar a canela, açafrão e pimenta.


Sucumbiu ao terramoto de 1755, para se erguer a mando de D. Sebastião José de Carvalho e Melo, também conhecido por Marquês de Pombal. Foi então que de Terreiro do Paço passou a Praça do Comércio por dela se avizinharem as ruas dos mercadores das mais variadas artes, ofícios e negócios que floresceram com o brilho do ouro das Descobertas. E também porque o rei, não fosse a terra tremer outra vez, mudou o Paço para a Ajuda, zona menos afoita a ondas gigantes.

De frente para o Tejo. O Cais das Colunas impõe-nos a solidão de dois vigias a mirar eternamente o rio. Esperam os navios que vêm do lado da ponte que já trouxeram tesouros e escravos, histórias de marinheiros embriagados e hoje carregam lotes de turistas que vão ali desembarcar em Santa Apolónia para entrarem na cidade do fado e da sardinha e deixarem cá as suas moedinhas. Ou então os cacilheiros que chegam da banda de lá cheios de gente que vem trabalhar para a cidade e logo, ao fim do dia, há-de fazer o percurso inverso e ver Lisboa a afastar-se sob o azul do céu a escurecer.

A Norte. O Arco Triunfal da Rua Augusta onde a Glória coroa o Génio e o Valor. Por baixo portugueses que por obras valerosas da lei da morte se libertaram.
Viriato.
Nun'Álvares Pereira.
Vasco da Gama
Marquês de Pombal, que dizem as más línguas, nunca se deixaria cair no esquecimento.
Com uma arrogância legítima, o arco, quase faz desaparecer os restantes 86 que ondulam na praça. Está ali para honrar as virtudes maiores para ensinamento de todos. Em Latim, claro.
 
A Nascente e a Poente os Torreões são como braços gigantes que nos encerram naquele quadrado de 4 hectares que transpira história. Ali mataram El-Rei D. Carlos e o seu primogénito em 1908, deixando o país mesmo à beirinha da República. Ali pararam chaimites no 25 de Abril de 1974. Ali se fizeram comícios, deram-se concertos, fez-se uma missa papal que parou Lisboa e decretam-se leis nos Ministérios. Já foi parque de estacionamento também.

Agora tem novidades. Tem esplanadas e discotecas. Tem espaço para circular e parar a mirar. Tem gente. Tem vida a circular.


A topar isto tudo, no meio da praça, altivo e real, está o D. José, montado no seu cavalo. Foi ele que mandou reconstruir a cidade depois de 1755. Foi ele que deixou o Marquês de Pombal brilhar e dar nome à Baixa. Debaixo das patas da sua montada, cobras para simbolizar as dificuldades do reinado.
Uma pata da frente torcida no ar. A outra pata direita no chão.
A esquerda.

domingo, 11 de maio de 2014

A Brasileira do Chiado.

Ai Brasileira. Se o Pessoa se levantasse da cadeira, entrasse e pedisse uma bica, faria uma careta e diria: “Isto é um café da treta.”


 A Brasileira do Chiado, ali ao cimo da Rua Garrett é um pilar da identidade nacional. Tudo porque, segundo reza a lenda, ali o café se transformou em bica. E a bica faz o país acordar.
No ido ano de 1905 o estabelecimento abriu as suas portas e passou a vender o “genuíno café do Brasil”, passado no saco, depois por uma torneirinha que o despejava em bica para uma cafeteira, que de seguida ia para o tabuleiro, que o garçon levava para a mesa, onde finalmente era vertido na chávena e chegava aos lábios do cliente. Frio.
Logo começaram a haver queixas. O café começou a ir para a chávena directamente da bica. A escaldar. Daí até se pedir uma bica, foi um saltinho.


Entra alemão. Sai francês. Sai uma bica a 1 euro ali para o freguês.


Em 05 de Outubro de 1910 é fundada a República Portuguesa e com ela chega a liberdade de reunião e debate. A Brasileira fervilha de tertúlias intelectuais. Por ali se sentavam escritores, pintores, sonhadores, jornalistas, lunáticos e outros intelectuais da altura. Em Março de 1915 é publicado o primeiro dos dois números da revista Orpheu que foi planeada entre bicas e cigarros nas mesas do café.


É pr'ó turista e pr'à turista, beba um café deslavado e veja o quadro do artista.


Os artistas sentiam-se em casa. Fernando Pessoa era cliente habitual antes de se mudar para o Martinho da Arcada no Terreiro do Paço. Em 1925 as paredes d'A Brasileira passaram a exibir quadros dos grandes pintores da época. De Almada Negreiros a Eduardo Viana, todos tornaram aquele espaço num museu. Mais tarde, já na década de 70, juntaram-se a eles obras de Carlos Calvet e Eduardo Nery entre outros. Café de arte e de artistas, preserva o ar cosmopolita à moda antiga até aos dias de hoje.


Tantas fotografias causam-me desassossego.


Nos anos 80 foi colocada na esplanada uma estátua de Fernando Pessoa sentado numa mesa. Quem chega ao Chiado senta-se com o poeta e tira fotografias. Pacientemente Pessoa mantém uma expressão calma. Mas a timidez fala mais alto e os olhos dele nunca se arredam do chão.


É entrar e gastar. É a despachar.




Acho A Brasileira um café maravilhoso. É inevitável sentir a vibração da história quando se entra. Sinto-me especial quando me sento e peço um café. Mas logo se quebra a sensação quando o café não é a afamada bica. É antes um café entre o queimado e o aguado. Quando pedimos a conta é
sempre excessiva perante a qualidade do que nos serviram.
Sendo A Brasileira um postal de Lisboa deveria prezar essa imagem. Um bom café faz um bom café. Um bom café agrada ao turista e ao artista. Um bom café é que é uma bica.