domingo, 21 de dezembro de 2014

É Natal.







Nunca fiquei em Lisboa no Natal. Aquela noite de 24 para 25 de Dezembro é sempre passada lá na minha Várzea onde faz mesmo muito frio, mas onde o meu coração está sempre quentinho.
Por isso, não sei de nada. Não faço a mínima ideia de como são esses dois dias na capital mas, a julgar pelas últimas semanas, espero que tudo abrande.

É que a capital tresloucou. O espírito de Natal assustou-se e fugiu a correr.

Por todo o lado há lisboetas apressados com olhares desvairados, carregados de sacos e embrulhos a correrem para a loja mais próxima. De caminho atropelam-se uns aos outros, enquanto pensam que, para ao ano, não dão prendas a ninguém. Só aos miúdos. Ou então começam em Novembro. É isso. Começam em Novembro.

Filas de carros intermináveis, lentas e barulhentas. Dentro das viaturas caras de poucos amigos e mãos na buzina. Está mais que provado que as buzinadelas fazem os obstáculos desaparecer por magia e assustam os semáforos, que, passam imediatamente a verde. Ou talvez não. Juro por todos os santinhos que ontem de manhã em Campo de Ourique os semáforos, em sinal de protesto por tanto mau humor, mudaram para vermelho e assim ficaram. Depois de quinze minutos à espera, os automóveis lá foram avançando pela Rua Ferreira Borges. Mas os semáforos, mostrando firmeza de carácter, vermelhos continuaram.

Os lugares de estacionamento são uma miragem. Durante o dia, as compras. Durante a noite, os jantares de Natal. Na sexta-feira passada, quando cheguei aqui ao bairro, andei uma hora às voltas à procura de um buraquinho para enfiar o meu carro. Quando finalmente encontrei, um chico-esperto ignorou-me, chegou e estacionou. Com a alma cheia do espírito da época,aproximei-me e pedi-lhe satisfações. E ele deu-me. Eu só estava a fazer pisca parada na rua e aquele lugar era público. Um ser de elevado estatuto moral a espalhar energia natalícia.

No meio de isto tudo, penso sempre: ainda bem que me vou embora. Quando eu voltar, já toda a gente recebeu os seus presentes, esteve com a sua família e andarão com um sorriso nos lábios. Depois do Natal poderemos todos ser felizes outra vez.

Até lá, vou tentar sorrir a todas as pessoas que vierem contra mim, piscar o olho aos semáforos teimosos e tolerar ladrões de estacionamento. É a minha prenda de Natal para os alfacinhas.

Boas festas.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Sai uma bica.


A bica é o combustível que faz andar Lisboa. O lisboeta atesta-se de cafés como quem atesta o carro. Não fora o mágico carburante e esta cidade seria a capital da procrastinação.
Ainda o sol não abriu bem o dia e os balcões de todos os cafés de Lisboa já estão rodeados com gente dormente à espera da chávena milagrosa que os trará de volta à vida. Em chávena fria, curta, com adoçante, cheia, normal, em chávena escaldada, sem começo, sem açúcar mas com colher, italiana, há uma fórmula certa para cada alfacinha caprichoso e dependente. Por trás do balcão, o empregado anda numa lufa-lufa para dar a cada cliente a sua dose matinal na medida certa. Das seis e meia às nove da manhã há-de ouvir-se em cada um destes estabelecimentos comerciais o barulho da máquina a moer os grãos, dos pires a assentarem no vidro do balcão, das colheres pequeninas, da torneira do vapor e da voz do garçon a gritar: “Dá uma bica.”
Ao longo do dia as chávenas dançam sem parar no balcão e nas mesas. É que a bica toma-se como um medicamento em horários rigorosos. A saber: de manhã, a meio da manhã, depois do almoço, a meio da tarde e depois do jantar.
Os mais dados a tremuras causadas pela circulação da cafeína no sangue, a partir de certa altura, batotam estas etapas com placebo. Bebem descafeinado. Mas alfacinha que se preze, bebe a bica a qualquer hora, e com cheirinho.

O lisboeta gere a sua vida social desdobrando-a em bicas.

“ Bebemos um cafezinho um dia destes.”
“Passa lá em casa ao fim de jantar para beber café.”
“Já bebeste a bica?”
“Pagas-me o café e ficamos quites.”


O precioso líquido é uma instituição digna de uma condecoração presidencial do 10 de Junho. Decrete-se já como património municipal. No meio desta crise que nos faz contar os tostões para comprar as prendas de Natal, enquanto houver uma moedinha para a bica, vai o lisboeta levando os dias com mais fôlego. Vai-se chegando ao balcão, com a alma conformada e confortada por ainda poder pedir: “É uma bica, se faz favor.”

domingo, 7 de dezembro de 2014

Alfacinhas há muitos.

Afinal porque é que os lisboetas são alfacinhas?

Reza a lenda.
Nem lenda, nem reza.

Perdeu-se nas brumas da memória a razão pela qual um habitante da capital se designa por alfacinha. E, se lhes perguntarem, os lisboetas respondem com estórias diversas, umas mais convincentes que as outras, sem que se possa chegar a uma origem comum. Cada alface, sua salada.

De todas as narrativas que ouvi, a minha preferida é aquela que conta que no século XIX os lisboetas tinham o costume de fazer piqueniques domingueiros na zona saloia. Vaidosos, vestiam os seus melhores fatos para o passeio. Atavam os seus laços ao pescoço e aí iam eles. Os saloios, que viviam da agricultura e estavam habituados a simplicidade, observavam estas personagens com olhos trocistas e afirmavam entre si que, com aqueles laçarotes presunçosos, os lisboetas pareciam umas alfaces.

Daí ao alfacinha, há-de ter sido um saltinho.

E se, durante décadas, chamar alfacinha a alguém, podia ser ofensivo, hoje travam-se verdadeiras batalhas verbais para se saber quem é descendente em linha directa da horta primordial.

É que alfacinhas há muitos.

Ser alfacinha de gema é ter ascendência lisboeta até à segunda geração. Pelo menos. É que isso de ter nascido na Maternidade Alfredo da Costa, não serve para convencer os mais ferrenhos. Alfacinha que é de gema tem uma avó da Mouraria, outra de Alfama e bisavô, quando muito, de Benfica.

Aqueles que têm terra fora de Lisboa, para passar o Natal, são uma espécie de alface embalada e pré-lavada. Falta-lhes o viço de gerações sucessivas a florescer por essas colinas fora.

Há as couves-flor, como eu, nascidas e criadas fora desta grande alface, mas com dupla nacionalidade. Que reclamamos o direito a ser tão alfacinhas como os de gema. Com o coração dividido, mas sempre a suspirar de saudades de uma Lisboa antiga que nunca vimos. Sempre dependentes desta luz boa para florescer.

Estou em crer que Lisboa é cidade generosa que acolhe a todos como seus rebentos. Não lhe interessa quando chegamos. Desde que a levemos connosco para onde formos. No fundo é como Almeida Garrett escreveu n' As Viagens na Minha Terra: "Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço."