domingo, 29 de março de 2015

Fado- Tomo I.



Ai este meu fado de fugir ao fado desde que comecei este blog.
Ai esta saudade do que ainda não escrevi quando olho para a folha em branco.
Para escrever sobre Lisboa é imperativo escrever sobre o fado. O fado é o sangue que corre nas veias da cidade. É o sentimento mais profundo e empedernido na alma de todo o alfacinha. É o coração desta cidade que transborda e se transforma em portugalidade. Ai que medo de escrever sobre ele.

Ai Madragoa.

Ai Mouraria.


Ai este meu fado de não saber por onde começar. Se pela Severa ou pela Amália. Se pelo Carlos do Carmo, se pelo Marceneiro. Se pela Moraria. Se pela Madragoa. E onde meter Alfama? Pela Rua da Palma ou pela Rua do Capelão? Faca na liga, ponta e mola, prostitutas, marialvas, faias, marinheiros, taberneiros, cavaleiros e toureiros. E a saudade?

Ai a saudade.
Onde é que eu meto a saudade?

Os destinos trágicos e a amargura. A felicidade evaporada e a alma afundada em aguardente. Os cigarros, a boémia, as vielas escuras, a vontade de Deus e a ansiedade. Um fadinho ou um faduncho. Nobre ou vadio. Começo pela Hermínia. Ou então pelos mais novos, pela Aldina, pela Ana Moura, pelo Moutinho, pela Gisela e pelo Camané.

Ai o Camané.
Como explicar a voz do Camané?

Vou pela sina. Pela cigana ou pela varina. Pela trança preta da menina. Pela viola ou pela guitarra. Pelo povo a lavar no rio. Pela voz que dói a cantar, pela janela das tabuinhas, pela luz de Lisboa, pelo barco negro. Pelo David Mourão Ferreira, pelo Ary, pela Natália, pelo Oulman ou pelo Carlos Paredes. E confesso às paredes que não me lembro de todos? E o destino?

Ai o destino.
O que é que eu faço ao destino?

Deixo-o vir. Deixo-o ditar-me as letras que hei-de escrever sobre o fado. Porque é fatalidade certeira que o fado primeiro sente-se e só depois de diz. E só depois se canta. E se quis o destino que eu não tivesse voz para ser fadista nem unhas para tocar guitarra, nesta coisa de escrever sobre o supremo fado, não me há-de trair. E eu hei-de explicar o fado tal como eu o oiço. Mas não é hoje. Hoje fico em silêncio e vou ali ouvir um fado.

domingo, 22 de março de 2015

Era uma vez.









Era uma vez um reino situado à beira de um rio. Os habitantes do reino eram serpentes e a sua rainha era um ser de extrema beleza chamado Ofiusa.

Ofiusa era meia serpente e meia mulher. Bela e sedutora, com voz de menina indefesa, mas má como as cobras. Quem se atrevesse a pôr o pé no seu território, ficaria para sempre seu prisioneiro. Por essa razão, os marinheiros mantinham-se sempre ao largo, traçando as suas rotas cuidadosamente por águas longe do reino das serpentes.

Calhou que Ulisses, nas suas aquáticas demandas, fosse aportar a tal lugar. E logo Ofiusa por ele se apaixonou e resgatou-o para seu amante. Prometeu-lhe o lugar de consorte. Desposá-lo-ia e enchê-lo-ia de glória e poder. Levou-o para o seu palácio no lugar mais alto do reino e banqueteou-o de ouro e pedrarias.

 Mas Ulisses tinha a sua Penélope à espera em Ítaca e não a trocaria por todas as riquezas do mundo. Resolveu fingir. Esperaria que a sua tripulação reestabelecesse as forças, encheria o porão do navio de mantimentos e zarpariam para nunca mais voltar.

Ofiusa viveu dias de felicidade. Tinha um homem bravo e garboso ao seu lado e um reino temido e temeroso. Que mais uma rainha pode desejar? Ulisses, prudente, tratou de a bem cuidar. Elogiava a sua formosura e mimava-a com desvelo.

Mas a sorte não se força e o dia chegou em que Ulisses conseguiu escapar. Quando Ofiusa acordou com os primeiros raios de sol, viu o lugar ao seu lado na cama vazio e teve um mau pressentimento. Correu para a janela e assistiu ao barco de Ulisses a desaparecer no horizonte.

Numa fúria cega Ofiusa estendeu os seus braços até ao rio invocando todas as suas forças. Cega de raiva, destruiu tudo à sua passagem. Serpenteou as terras, criando sulcos tão profundos que deles nasceram sete colinas. Mas ficou com os braços a boiarem sobre as águas, vendo o seu amado cada vez mais distante até desaparecer.

Depois disto, sofreu para o resto dos seus dias. Só e louca a vaguear pelos quartos do palácio. De tanta solidão magicou uma história de amor. Na sua cabeça, Ulisses continuava a seu lado. Juntos criavam um reino ainda mais poderoso e famoso. Davam-lhe o nome de Ulisseia.

Se esta história é certa não se sabe. Sabe-se que o nome do reino se estendeu pelos séculos. Sofreu as erosões das línguas dos povos que o invadiram.

Olissipo.
 Olissipona.
 Lisboa.

E se Ofiusa não viveu feliz para sempre com o seu Ulisses, deveu-se talvez ao facto de nesta narrativa ela ser a rainha má. Mas até as rainhas más fazem coisas boas. Deu-nos as colinas e este nome tão bonito e bom de dizer: Lisboa.

domingo, 15 de março de 2015

A obra.


Há em Lisboa uma igreja onde os deuses nacionais descansam as ossadas até ao fim dos tempos. O Panteão Nacional é a coisa mais parecida que temos com o Olimpo. Por lá habitam as almas de duas mulheres divinas, Amália e Sophia, e de uns quantos homens celestes, de Garrett a Aquilino, de Humberto Delgado a alguns Presidentes da República, e, um dia destes, o Eusébio.
Por ordem da Infanta D. Maria se lançou a primeira pedra da igreja em honra de Santa Engrácia de Saragoça. Corria o ano de 1568. Pensava a infanta que a obra seria rápida, coisa para uns cem anos. Porém, uma história de amor meteu-se no caminho e a construção atrasou. As obras de Santa Engrácia duraram 398 anos.
Em 1631 Simão Pires Solis apaixonou-se perdidamente por uma noviça do Convento de Santa Clara, que ficava mesmo ao lado das obras da dita igreja. Todos os dias, mal a noite caía, lá ia ele encontrar-se com a sua amada. Tal era o enamoramento, que resolveram fugir. Mas o destino é malicioso e na noite combinada para a fuga, à mesma hora em que Simão se dirigia ao convento para ir buscar a sua prometida alguém entrava na Igreja de Santa Engrácia, quase construída, e roubava o sacrário com as hóstias. O ladrão sumiu-se e Simão apareceu. Logo ali foi rodeado pelo povo, convencido de que era ele o larápio. E nem o facto do pobre jovem não ter os objectos roubados com ele persuadiu os seus acusadores. Foi preso e condenado às fogueiras da Santa Inquisição.
Quando o levaram para cumprir a pena, passou mais uma última vez em frente ao convento, onde a noviça chorava a perda do seu amor. Olhou para a Igreja de Santa Engrácia e gritou: “Morro inocente. É tão certo eu estar inocente como é certo aquelas obras nunca se acabarem.”  
Passados uns tempos, quase com a inauguração marcada, a cúpula da igreja ruiu. As obras recomeçaram. Depois veio o terramoto e a igreja tombou. As obras recomeçaram. E foram demorando. Serviu, entretanto, de armazém de armamento do Arsenal do Exército e de fábrica de sapatos até ao século XX. As obras foram concluídas por ordem expressa do Governo em 1966, sendo-lhe atribuído o estatuto de Panteão Nacional.
Verdade ou lenda, é certo que a igreja demorou muito mais tempo do que o esperado a ser erguida. Talvez a história não tenha chegado assim tão bem contada aos nossos tempos. Talvez Simão tenha amaldiçoado todas as obras do país. É que obras de Santa Engrácia há muitas.

domingo, 8 de março de 2015

Cheira a Lisboa.






Um craveiro numa água-furtada.

Uma rosa a florir na tapada.

Cheiram bem. Mas cheiram mesmo a Lisboa?

É que pelos becos e ruelas sem sol desta cidade grande, nem sempre o cheiro enche as narinas de prazer como canta a cantiga. Que Lisboa tem os seus próprios cheiros é verdade verdadeira, mas que não são todos bons, também me parece premissa irrefutável.

Passam-me pelas narinas memórias de perfume a bafio naquelas ruas onde o sol não bate nunca à porta. O indício de gato em prédio pombalino, pelo cheiro a chichi que se sente nas escadas. O odor a calor humano em tardes de estio num autocarro da Carris. O rasto de poluição que os automóveis espalham pela Avenida da Liberdade e arredores. O cheirete a peixe a decompor nos caixotes do lixo à porta dos mercados. O azedume que sai das sarjetas quando ainda não secaram da última chuvada. O pivete que nos bate com força na cara quando, por azar, somos apanhados desprevenidos pela traseira de um carro do lixo. E há aqueles dias em que o Tejo tem as entranhas revoltas e o eflúvio de couve cozida há dois dias sobe por Lisboa até à Graça.

Por outro lado.

Por outro lado, por esta capital fora, há cheiros bons e singulares que ora nos abrem o apetite, ora nos abrem o sorriso. O cheiro das sardinhas assadas nos meses sem “r” no nome. O consolo do manjerico no mês do Santo António. O odor a bolo quente nos pastéis de Belém. O perfume a flores e frutas no Mercado da Ribeira. O aroma a detergente nas escadarias dos prédios. A brisa de roupa lavada que sopra dos estendais. O cheirete a bacalhau seco na Rua do Arsenal. O cheirinho a café acabado de tirar à porta da Brasileira. A gula a castanha assada que vem no ar nas tardes de Outono. E há aqueles dias em que o Tejo está tranquilo e traz o eflúvio a maresia que sobe por Lisboa até à Graça.

Lisboa é de perfumes e pivetes. Tem os seus fedores muito próprios e as suas essências finas.  Mas que não venha ninguém de fora dizer que aqui os cheiros são maus. Enchem-se o alfacinha de brio, respira fundo e logo responde: Cheiram bem porque são de Lisboa. Lisboa tem cheiros de flores e de mar.

domingo, 1 de março de 2015

Nome de rua.




Lisboa tem ruas com nomes de pessoas importantes, praças nomeadas por feitos históricos, avenidas consagradas a princípios da humanidade. Designações pomposas, que honram gente importante e grandes feitos históricos. Enchem o ouvido e perpetuam na memória as tais obras valerosas que da lei da morte libertam de que nos falava Camões.

Porém há ruas com nomes menos inchados e barrocos. Nomes que traduzem o que a rua foi ou é na sua existência quotidiana, banal ou dramática, maravilhosa ou arrepiante.

A Rua do Poço dos Negros é um destes casos em que o trivial de certa época a marca e denomina para sempre. Começa no Largo Dr. António de Sousa Macedo, ao fundo da Calçada do Combro e acaba na Avenida D. Carlos I. É hoje uma rua simpática, com drogarias, alfarrabistas, lojas do chinês, antiquários, um grupo teatral, restaurantes, uma mestre pasteleira francesa, cafés, quinquilharias, mercearias e uma loja de chá.

Mas tempos houve em que lhe foi dado um destino perverso e infame que lhe ficaria para sempre marcado no nome. Tudo por ordem de El-Rei D. Manuel I, o Venturoso, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia e pragmático solucionador de problemas de saúde pública.

No século XVI, a próspera Lisboa deparava-se com um incómodo problema de difícil solução. Onde depositar os escravos que chegavam de África para servir quando morriam? Se nem sequer eram filhos de Deus não mereciam as honras da vala comum dos cemitérios.

Alguns eram lançados na praia, ficando à mercê dos cães e outros bichos aguardando a putrefacção ou uma onda que os levasse. Outros, eram depositados na lixeira junto da Cruz da Pedra a Santa Catarina, hoje Rua Marechal de Saldanha, ali quem vai para o Adamastor, tornando a Lisboa daqueles tempos ainda mais insalubre e malcheirosa.

Urgia resolver este caso. Foi então que D. Manuel I, resolveu tratar ele próprio do assunto metendo mãos à obra. Pegou numa pena e redigiu uma carta. Que se escavasse um poço de grande profundidade, em local conveniente para se deitarem os tais escravos. De tempos a tempos que se jogasse sobre ele cal virgem para ajudar à decomposição dos corpos.



Assim decretou, assim se cumpriu. Na Rua da Horta Navia, abriu-se o profundo buraco que passou a ser o depósito de que Lisboa tanto precisava. E o poço dos negros deu o nome à rua até aos nossos dias.


Por felizes evoluções da sociedade, hoje, quando lhe dizemos o nome, nem sequer associamos ao seu passado macabro. O exacto local do poço caiu no esquecimento. Mas fica gravado na toponímia lisboeta, como se as vergonhas do passado também merecessem ser lembradas para sempre.