domingo, 4 de junho de 2017

Entre lençóis.



Lisboa, cidade coscuvilheira, gosta de saber das vidas de quem nela pernoita. Mesmo que só por umas horas, gosta de saber detalhes desses tais turistas que agora chegam aos molhos enfeitiçados pela sua formosura. Todas as manhãs entra nos quartos, examina os lençóis e tira as suas conclusões. Cada muda de roupa conta pelo menos uma história.

As camas abertas com as roupas para trás, revelam posições de corpos que ali estiveram em repouso. Se dormiram enroscados ou separados. Se dormiram serenos ou alvoroçados. Se dormiram. E presumem-se partes de vidas. Casamentos vencidos pelo peso dos anos ou empolgados pela frescura do começo. Amizades castas, sonhos de irmãos, crianças veladas pelas mães no seu dormir inquieto e intermitente.

As camas abertas e as janelas ainda fechadas expõem cheiros de sonos profundos, adormecidos pelo álcool ou por soníferos, pela tranquilidade de espírito ou pela fadiga. Noites de má-vida que terminam num vómito na hora de deitar. Perfumes que sobraram no corpo e mergulham no colchão. Suores quentes e frios que amargam o ar. E supõem-se aventuras antes do sono. Jantares entre amigos que terminaram aos ziguezagues pelas ruas de Lisboa. Corpos a dançar até o sol nascer. Perfumes que não seduziram ninguém.

As camas abertas à pressa ou devagar destapam gestos matinais bruscos ou calmos. Aviões quase perdidos, reuniões que se atrasam, encontros que nunca vão acontecer. Nas mesas-de-cabeceira esquecem-se rosas com promessas, copos de água bebidos até meio, embalagens de comprimidos vazias e roupa interior tirada com urgência. Rituais matutinos ou corridas matinais prevalecem no espaço como se as pessoas ainda ali estivessem.


Mudam as mudas de roupa com os turistas. Vão para as lavandarias para branquear a altas temperaturas e serem passadas por ferros pesados. Novos corpos deixam novas marcas e Lisboa baralha-se com tantas biografias. Lisboa ilude-se com tantas aparências. Tantas singularidades que parecem mas não são. Mas o algodão dos lençóis, companheiro de cada noite e que tudo presencia, há-de guardar cada segredo até à última noite que aconchegar.